Trecho do artigo "Por uma teoria do corpomídia ou a questão epistemológica do corpo", de Helena Katz e Christine Greiner
Corpomídia: o movimento como matriz da comunicação
Em 1987, o americano Mark Johnson repropôs a relação entre corpo, movimento e cognição. Mostrou que a cognição tem origem na motricidade e explicou que a idéia de que existe um dentro, um fora e um fluxo de
movimento entre eles se apóia no conceito de corpo como recipiente. Talvez a popularização da proposta de corpo como recipiente tenha a ver com um ações muito básicas como as de ingerir e excretar, inspirar e expirar (que, evidentemente, dizem respeito a algo que entra e a algo que sai).
Curiosamente, a comunicação tem a ver com esse movimento de entrar e sair de situações, de si mesmo e do outro, e assim por diante. O processo de codificação dos pensamentos tem aptidão para acionar
o cruzamento de estruturas de ocorrência coerentes. O que garante a coerência do cruzamento é uma homologia de probabilidades nas transições espaço-temporais, homologia que criaria as condições para que a informação do for a possa ser percebida e ser levada para dentro do corpo. Muitos têm discutido essa mesma questão, a do contato entre dentro e fora. O semioticista Thomas Sebeok (1991) salienta que o contexto onde tudo isso acontece é muito importante e que o “onde” tudo ocorre nunca é passivo.
Assim, o ambiente no qual toda mensagem é emitida, transmitida e admite influências sob a sua interpretação, nunca é estático, mas uma espécie de contexto-sensitivo. Para quem estuda as manifestacões contemporâneas de dança, teatro e performance como processos de comunicação, isso é facilmente reconhecível. Já há alguns anos o “onde” deixou de ser apenas o lugar em que o artista se apresenta, transformando-se em um parceiro ativo dos produtos cênicos. Ao invés de lugar, o onde tornou-se uma espécie de ambiente contextual.
A noção de contexto também varia muito. Sebeok define contexto como o reconhecimento que um organismo faz das condições e maneiras de usar efetivamente as mensagens. Contexto inclui, portanto, sistema cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, a memória de mensagens prévias que foram processadas ou experienciadas e, sem dúvida, a antecipação de futuras mensagens que ainda serão trazidas à ação mas já existem como possibilidade. Nestas antecipações, há também uma questão bastante discutida que é a do instinto (Pinker, 1997 e 2000), a prédisposição comportamental apta a operar antes de qualquer experiência.
As relações entré o corpo e o ambiente se dão por processos coevolutivos que produzem uma rede de pré-disposições perceptuais, motoras, de aprendizado e emocionais. Embora corpo e ambiente estejam envolvidos em fluxos permanentes de informação, há uma taxa de preservacão que garante a unidade e a sobrevivência dos organismos e de cada ser vivo em meio à transformação constante que caracteriza os sistemas vivos. Mas o que importa ressaltar é a implicação do corpo no ambiente, que cancela a possiblidade de entendimento do mundo como um objeto aguardando um observador. Capturadas pelo nosso processo perceptivo, que as reconstrói com as perdas habituais a qualquer processo de transmissão, tais informações passam a fazer parte do corpo de uma maneira bastante singular: são transformadas em corpo. Algumas informações do mundo são selecionadas para se organizar na forma de corpo – processo sempre condicionado pelo entendimento de que o corpo não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo co-evolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo não estanca, o corpo vive no estado do sempre presente, o que impede a noção do corpo recipiente. O corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo.
O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as
informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se transmite em processo de contaminação.
Para entender de forma ainda mais clara o processo de transmissão entre corpo e ambiente, vale recorrer a Lakoff e Johnson (1998, 1999), que nos ensinam que conceitos não são apenas matéria do intelecto. Estruturam o que percebemos, como nos relacionamos com o mundo e com outras pessoas, e também como nos comunicamos. Nosso sistema conceitual ocupa um papel central definindo as realidades cotidianas. De acordo com Johnson, o modo como pensamos e agimos, o que experimentamos e o que fazemos em nosso cotidiano, tudo isso é sempre matéria metafórica. Como a comunicação se baseia no mesmo sistema conceitual que usamos para pensar e agir, a linguagem verbal se torna uma fonte importante de evidência do funcionamento do sistema. Importante, porém não a única.
Em termos cognitivos, a metáfora configura-se como um conceito e pode ajudar a entender o processo evolutivo da comunicação. Ao comunicar algo, há sempre deslocamentos: de dentro para fora, de fora para dentro, entre diferentes contextos, de um para o outro, da ação para a palavra, da palavra para a ação e assim por diante. A sistematicidade que nos permite entender um aspecto de um conceito em termos de outro (a chave da metáfora) vai necessariamente esconder outros aspectos do conceito e da experiência. Idéias e expressões linguísticas são objetos e a comunicação identifica-se com a ação do envio das informações. Tal envio, contudo, não pode ser descrito à luz do modelo proposto pela Teoria da Informação de Shannon e Weaver, que apostava na relação emissor-receptor e não levava em conta as contaminações processadas pelo meio.
O conceito metafórico representa um modo de estruturar parcialmente uma experiência em termos da outra. A pergunta é: o que faz parte do domínio básico de uma experiência? As experiências são fruto de nossos corpos (aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional, etc), de nossas interações com nosso ambiente através das ações de se mover, manipular objetos, comer, e de nossas interações com outras pessoas dentro da nossa cultura (em termos sociais, políticos, econômicos e religiosos) e fora dela. Nessa perspectiva, o ato de dançar, em termos gerais, é o de estabelecer relações testadas pelo corpo em uma situação, em termos de outra, produzindo, neste sentido, novas possibilidades de movimento e conceituação.
A filósofa Maxime Sheets-Johnstone pondera que há uma transferência analógica de sentido que é metacorporal. A iconicidade é processada entre gestos (tátil-cinético) da fala e o caráter cinético espacial dos processos ou eventos a que se referem. Na representação corporal simbólica, define a existência de uma semântica evolutiva que coloca os sistemas animais comunicativos dentro de um espectro mais amplo: como modos biológicos de significação. Sugere que formas humanas e não humanas de comunicação sejam entendidas dentro de uma estrutura de referência não abstrata e, de modo algum, em perspectiva ahistórica.
Os estudos da representação corporal simbólica já foram analisados por autores como Sigmund Freud, no que se refere ao estudo dos sonhos; Susanne Langer, quanto à estética dos objetos de arte; Leroi-Gourhan,
sobre temas diferentes, incluindo a arqueologia dos artefatos pré-históricos. Todos trabalham com a hipótese de que funcionamos através da incorporação original de um pensamento original. Mas Sheets-Johnstone insiste que a semanticidade e a iconicidade vêem juntas desde o começo de todos os processos representacionais e que ambas são fundamentais para a comunicação. E que a dinâmica cinética da atividade corporal trabalha, em suma, seja qual for o contexto particular, com símbolos cinético-táteis espontaneamente formados e analogamente ancorados na percepção viva das diversas criaturas e espécies.
Os símbolos são estruturados em experiências pré-corpóreas não apenas pela percepção da fala mas analogamente à percepção do sonho. Daí nasce a possibilidade de comunicação. Cognição e comunicação não são sinônimos, nem mantêm uma relação de causa e efeito. Recentes estudos em Dinâmica (Ven Gelder e Port 1991, Thelen e Smith 1997), demonstram que o traço comum entre elas está no fato de ambas serem processuais (ver Sheets- Jonhstone, 1998: 266-267). Não se trata de uma série estática de representações e, nesse sentido, a comunicação não pode ser restrita a significados. Afinal, nem tudo o que se comunica opera em torno de mensagens já codificadas. Há taxas diferentes de coerência, incluindo, por exemplo, a comunicação de estados e nexos de sentido que modificam o corpo. Esses processos têm lugar no tempo real de mudanças que ainda estão por vir, no ambiente, no sistema sensóriomotor e nervoso. Quem dá início ao processo é o sentido do movimento. É o movimento que faz do corpo um corpomídia.
Disponível em: http://artesescenicas.uclm.es/index.php?sec=texto&id=237&PHPSESSID=azhwlexmmzvpjcee
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